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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Memória da Memória


Fernanda Tatagiba*

O que representa a loucura pode ser a parte mais libertadora. Na peça Eros Impuro, vemos um artista preso fisicamente em um espaço todo branco, mas, sobretudo, acorrentado pela memória. Tudo que tem cor, como o quadro, objetos e a projeção de fotos e vídeos, ganha destaque e vida, contrastando com cenário e figurinos brancos, mas, principalmente por estar carregado pela força da lembrança do personagem.

Andrei é uma artista que parece estar em uma prisão psiquiátrica pintando vorazmente um quadro de um dorso de um homem nu. Altera risadas nervosas e um medo inquietante ao ouvir as constantes sirenes de ambulância. Ele repete sua atividade anterior ao confinamento, de pintar meninos seminus. Uma memória da memória, já que isso lembra sua juventude de trauma e descoberta do desejo sexual. Sua arte é um misto de busca da inocência perdida e um erotismo exacerbado e recolhido.

Andrei aponta para a platéia, sugerindo que somos seu modelo, os rapazes que costumava pintar. Ele pede que relaxemos. O que pode ser o auge do seu deliro, culmina por dar uma sensação da realidade do personagem, da pujança de sua memória viva. Mesmo falando de lembranças, sua presença e experiência ali, diante de nós, são reais. A memória, no momento em que é encenada deixa de ser memória, ou pelo menos se desprende do peso da poeira. Através de sua arte, como a de grandes artistas atormentados pela loucura de seu gênio criador, ele não fica preso a sua solitária e endurecida realidade.

Seus tormentos com as sirenes e gargalhadas dão um tom de tensão à peça. As imagens projetadas no pano branco começam com cenas genéricas e históricas de representações de nudez remontam a própria referencia do expectador, compartilhando aqueles sentidos, e termina com as lembranças mais profundas do amigo de infância e suas revelações. Quando Andrei vai para trás da tela, no momento da projeção, ele se torna aquelas imagens, estamos diante de sua mente. Ele está em pé, paralisado por seus sentimentos.

Essas imagens eróticas, acompanhadas uma música eletrônica, remete-nos ao espetáculo do desejo em nossa sociedade, comumente veiculado e consumido. No palco essa referência é contrastada com os sentimentos confusos do personagem e um cenário gélido, trazendo uma estranheza que enriquece a peça.

A sugestão das idéias de loucura e possibilidade artística foram muito bem construídas, assim como as escolhas dos elementos cênicos para representar o hospício e suas lembranças. A projeção além de dinamizar o espetáculo, criando uma espécie de dialogo cênico, e também simboliza sua memória de freqüentador de cinema erótico.

O ator parecia um pouco tenso no começo, mas à medida que a peça transcorria, foi descontraindo, sendo seu ponto alto a propriedade com que diz as falas, recheadas de nuances. Porém, em alguns momentos suas risadas parecem falsas e exageradas, além de serem injustificadas e vazias, pois não pareciam ir além de exprimir sua tensão e delírio.

A idéia de iniciar o espetáculo com o ator no palco é inusitado e intrigante, aumenta a curiosidade pelos gestos e gritos do personagem. Assim como também enfatiza seu universo participar, pois ele já estava ali, com sua loucura, nós é que entramos em seu mundo.

A peça termina com Andrei atrás do pano, simbolizando seu aprisionamento mental, e também sua visão diante da tela em branco, momento de infinitas possibilidades que fazem ultrapassar as paredes do lugar.

* Fernanda Tabagiba participou da Oficina de Crítica, do Festival Nacional de Teatro de Vitória


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